Ex-morador de rua abre restaurante vegetariano
Quem passa pela rua Conselheiro Ramalho, na Bela Vista, em São Paulo, pode pensar que o Humus Gourmet é apenas mais um restaurante vegetariano. Mas o lugar é dono de uma história singular, repleta de superações e sonhos do chef, um ex-morador de rua que usa o seu estabelecimento para ajudar quem hoje passa pelo o que ele já viveu.
Tudo começa com Gabriel Guimarães, 33 anos, que, desde pequeno, vivenciou sucessivos traumas e violências. Aos 7, sua mãe foi violentada e assassinada por policiais em decorrência do tráfico, na frente dos quatro filhos. Mais velho entre os irmãos, Gabriel entendia melhor o que era a morte, pois tinha chorado a tragédia dos Mamonas Assassinas algum tempo antes.
O que fez depois que a polícia saiu foi se trancar em um quarto com os mais novos, o botijão de gás e o fogão, onde cozinhou macarrão e salsicha por três dias seguidos. Foram resgatados por um primo, que os levou para morar com a avó, o que não durou muito – ela já cuidava de outras três outras crianças e não tinha condições de mantê-los. Os irmãos foram parar, assim, em orfanatos do Rio de Janeiro.
Quando completou 11 anos, Gabriel deixou o Instituto Metodista Ana Gonzaga com o seu pai, que havia acabado de cumprir pena na prisão. Com duas semanas, em uma visita a alguns parentes em São Gonçalo, mais uma tragédia cruzou seu caminho: ao descobrirem que seu pai traficava para outra facção, quinze homens o assassinaram, deixando Gabriel órfão. Deram-lhe o dinheiro que o pai carregava e lhe puseram dentro de um ônibus de volta para o Rio de Janeiro.
“Esse ônibus foi parar em Botafogo. Eu desci e peguei todo aquele dinheiro, fui em um pipoqueiro e perguntei se podia comer pipoca porque eu estava com muita fome. Eu nunca tinha visto dinheiro e sabia que ele podia comprar alguma coisa. Hoje eu descobri que deixei mais ou menos R$ 2.000 com aquele pipoqueiro para uma pipoca de um real”, disse.
Gabriel seguiu caminhando até passar debaixo de um viaduto, onde acabou ficando. O terror o atormentou mais uma vez, quando, na primeira noite, um homem mais velho o violentou com o argumento de que ele não poderia ficar no viaduto se não se submetesse a isso. Depois do episódio e ainda com a morte do pai na cabeça, preferiu achar um lugar sozinho. Nessas andanças, encontrou duas criaturas que viriam se tornar seus grandes amigos: um cachorro chamado Rob e seu dono, que aparentava ter seus 22 anos e cujo nome era desconhecido.
“Perguntei para ele como que fazia para conseguir comida, porque eu estava com fome e fazia dias que eu não me alimentava. Eu tinha muita vergonha de pedir. Ele falou para ir com ele que ele ia me ensinar tudo. O chamavam de várias coisas, mas ninguém sabia o seu nome verdadeiro. Eu acabei o apelidando de Fiel, porque ele era um amigo muito fiel. Me ensinou tudo o que eu sabia na rua, como conseguir dinheiro sem ter que roubar”, contou.
Inspirada a deixar a vida na rua, a dupla passou a fazer reciclagem de materiais que encontravam no lixo. Mas, durante uma semana que não trabalharam, mais uma perda destrutiva: o cobertor em que Fiel dormia pegou fogo e Gabriel não conseguiu contê-lo. O amigo morreu nesta noite.
Andando pelas ruas na tentativa de se afastar do lugar traumático, Gabriel acabou encontrando o pai adotivo de sua irmã, que o reconheceu através de uma foto antiga. “Ele perguntou se eu queria ter uma família, não falou que tinha adotado a minha irmã. Eu aceitei e fui. Quando eu cheguei na casa dele, do lado de fora, ele gritou para a esposa, a Miriam, e logo atrás dela veio a minha irmã. Eu a reconheci na hora e foi aquela choradeira. Não sabia o que dizer, eu só corri e a abracei. Daí em diante, ele cuidou de mim”, disse.
Novo começo – A partir daí, Gabriel morou um tempo com seus pais adotivos, depois com o genro deles, em seguida morou sozinho e, por fim, foi para Ilha Grande (RJ) tentar uma nova vida, sonhando em virar cozinheiro. “Teve um momento na minha vida de rua que eu estava com Fiel em Botafogo, de frente para um pub, e tinha uma galera muito feliz comendo. A comida parecia muito gostosa. Eu falei para ele que ia virar cozinheiro e que todo mundo ia poder comer, não só quem tem dinheiro. E o Fiel sempre me apoiou muito. Foi uma das promessas que eu fiz para ele. Foram três, que eram: ajudar os nossos companheiros de rua, virar cozinheiro e ser reconhecido como tal e ter minha própria família”, afirmou.
A primeira promessa cumprida foi a de trabalhar na cozinha de um restaurante, onde aprendeu tudo o que sabe de culinária. Passou 15 anos no ofício até sentir que já não podia crescer mais na Ilha Grande. Veio para São Paulo em 2019 e, depois de um tempo e grandes desafios, decidiu abrir uma loja no iFood para vender refeições vegetarianas. Assim, surgiu o Humus Gourmet, cujo cardápio conta com uma variedade de pratos veggie e vegan, como falafel, feijoada, strogonoff de vegetais, picadinho de jaca, berinjela à parmegiana, entre outros.
No primeiro mês de existência, um insight definiu um olhar social do restaurante. “O movimento estava fraco, estava chovendo e eu comecei a olhar pela janela da avenida Nove de Julho, que dá de frente para o viaduto 14 Bis. Embaixo dele, tinha sete moradores de rua tentando acender um fogo para tentar fazer comida. Na hora, lembrei de mim e do Fiel e pensei “é isso. Tenho que fazer isso”. Montei sete marmitas de PF de falafel, levei para eles e me senti muito bem com aquilo”, contou Gabriel.
Após pouco tempo, conheceu a atual namorada Marília que, com uma semana, apoiou o sonho de montar um espaço físico. “Abrimos a loja, mas eu falei para ela que a gente teria que ter um PF Rua, que é o PF Fiel hoje, porque nasceu por causa dele. Foi uma promessa que eu fiz para ele”, disse.
Projeto PF Fiel – A ideia por trás do projeto é simples: o objetivo é que o morador de rua possa usufruir do mesmo prato que qualquer outro cliente, mas de forma gratuita. O consumidor pagante pode doar um valor simbólico de R$ 10 para o projeto no momento do pedido e ajudar a alimentar alguém com fome. “O pessoal paga se quiser, mas eles acabam tendo empatia e pagando. Eu já escolhi o público vegetariano com isso em mente, por causa do ativismo e da humanidade. É muito forte”, contou.
Mas o PF Fiel não é o único projeto social do Humus Gourmet. Quinzenalmente, o restaurante distribui 150 “quentinhas” em ações sociais no centro de São Paulo. Além disso, também doa cestas básicas em ocupações e auxilia moradores de rua conhecidos, que precisam de outros serviços, como registro de identidade, orientação para tomar remédios, busca de locais acessíveis para realização de exames, entre outros.
Para abrir a loja física, reformá-la e fazer com que o restaurante sobreviva à pandemia, no entanto, Gabriel contraiu algumas dívidas que ameaçam a existência tanto do Humus Gourmet quanto dos projetos sociais. Uma saída encontrada foi a de recorrer a uma vaquinha online, cuja meta já foi alcançada. Veja aqui.
Dos sonhos que contava ao Fiel, resta agora apenas um: ser reconhecido como grande chef: “isso está perto de acontecer, eu acho (risos). Estou aprendendo”. Agora que tem o restaurante e está próximo de montar uma família – vai casar com Marília –, Gabriel diz não ter mais sonhos, e sim objetivos. “Agora quero ver o projeto Fiel indo para frente. Quero ver o restaurante bombando e o pessoal indo, porque lá tem o melhor falafel”, disse.
“quem não vive para servir não serve para viver. Essa é uma frase muito verdadeira. É só acolher o próximo, ajudar. Em algum determinado momento, você será recompensado por aquilo.”
Fonte: Revista CasaeJardim
Imagens: Foto: Gabriel Guimarães / Acervo Pessoal e Humus Gourmet / Reprodução